Olá! Esse é o boletim #27 da revista USINA!
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Nessa edição: o ensaio “Variações sobre o Matriarcado” de André Aranha, a onipresença de Billi no xarpi carioca, a Camerata Leguiniana de Negalê Jones e um poema de Leonardo Marona.
Ensaio
Variações sobre o Matriarcado - André Aranha
“Quero, com as linhas seguintes, atar num tecido só, uma série de retalhos. Descrições, que são tão óbvias, mas nunca alinhadas para que mostrem, enfim, a figura que parecem indicar.
Esse eco de forma, que eu escuto, na tonalidade de cada fragmento – sempre incompleto – esse ressoar oculto, a que me falta saber dar a afinação, a cadência, o ponto de início, que os porá em conjunto, peças que são, de um grande hieroglifo…
Forjaria assim, eu, a chave, que desataria nosso pensamento? Mais bem o contrário: uma grande costura, que tão-só manteria unas as nossas ideias. Redescoberta, reinvenção do elo, da liga, nesse cenário de palavras abertas, nessa desconstrução da língua instaurada.
Vejam a hesitação que assumo, aqui, no umbral de entrada; em que receio invocar, tão cedo, já a cena que me põe a pensar – e que eu adio, com medo dela de novo me silenciar.
Forro então, pouco a pouco, este início com palavras, com um tom: e me apeteceria saber mantê-lo – esse fio, essa nota de clareza comum desde o umbral de entrada na escritura, cenário adentro.”
Artes Visuais
Billi, o onipresente
Se você já andou pelas ruas cariocas, deve ter visto esse nome escrito em alguma superfície – seja ela o concreto, o azulejo, o cimento etc. Billi é onipresente nas ruas cariocas e mesmo arredores – dizem que sua fama se estende por todo o Estado. Pode começar a reparar. Vão existir poucos lugares na cidade em que Billi não tenha deixado a sua marca. Um ícone e verdadeira lenda do xarpi carioca.
Billi carrega uma reputação que mistura realidade e mito. Relatos indicam atua como taxista, profissão que usaria como cobertura para suas atividades. Circula entre os pichadores a informação de que ele também comercializava tinta durante as ações, mas essas afirmações permanecem no campo do rumor, sustentadas principalmente por conversas informais entre os membros da cena. Sua figura, no entanto, é incontestavelmente marcante, consolidando-o como um dos nomes mais legendários do xarpi carioca.
Nesse universo, a técnica considerada mais perigosa é a escalada por janelas – ou “janelada” –, que dispensa equipamentos como escadas e depende exclusivamente da habilidade de subir pelos parapeitos e marquises. Enquanto a escada oferece certa segurança por sua estrutura fixa, a modalidade “janeleiro” é vista como um vício incontrolável por seus praticantes. Billi, no entanto, teria se destacado em outra frente: o “tintão”, prática que consiste em pichar muros suscetíveis a rápida remoção – muitas vezes apagados no dia seguinte por repinturas. A estratégia, menos técnica que as escaladas perigosas, compensa a baixa durabilidade com exposição maciça. Esses locais, frequentemente visíveis em vias movimentadas, garantem que os nomes sejam vistos por milhares, mesmo que temporariamente. Billi levou à exaustão o “tintão” e seu nome está (ou já esteve) escrito em praticamente toda parte do Rio de Janeiro.
Música
Camerata LeGuiniana - Negalê Jones
Artista sonoro carioca, Negalê Jones explorou desde cedo sonoridades experimentais. Em 1996, integrou o grupo Os Afronautas, que fundia eletrônica e percussão, marcando seu interesse por paisagens sonoras não convencionais. Sua pesquisa atual mergulha em ritmos orgânicos, bioeletricidade e etnobotânica, utilizando circuitos eletrônicos para revelar sons ocultos do reino vegetal – como a energia do contato entre mãos e flores ou a condutividade da seiva. Em suas instalações, investiga ainda como frequências sonoras dispersam aromas de ervas curativas, entrelaçando arte, tecnologia e tradição. Foi influenciado pela música concreta, pelos saberes de cura ancestrais e pela mitologia afrodiaspórica, criando uma ponte entre inovação e natureza. Sua abordagem nasce da observação do movimento das plantas, com projetos que mesclam eletrônica, programação e botânica e tratam o som como matéria moldável, geradora de formas e sensações. “Camerata Lenguiana” é uma obra exemplar de sua trajetória, que brinca com a tradição da música de câmara ao apresentar resultados sonoros de experiências com rochas, liquens e plantas.
Poesia
poema escrito após um ano sem escrever poemas - Leonardo Marona
cogumelos dissolvem na viagem lúdica
a solidão residente na vontade de viver.
vontade de viver é hoje uma expressão
canhestra, assim como hoje é canhestra
a palavra canhestra e o amor romântico.
sozinho gosto mais de ouvir joão gilberto
do que acompanhado, pois sozinha é a voz
– sempre ao vivo – sob a foz do limite zen.
argumentos encaixo em músicas para victor
e tomo finalmente um cafezinho sem açúcar,
pois que a vida sem açúcar é uma vida adulta.
no bairro peixoto a vida é adulta e sou adulto.
peço amavelmente um cafezinho sem açúcar,
inclusive pago a conta por trás de um sorriso,
para que o jovem garçom pense: é um adulto.
sou adulto – entorto a face enquanto a língua
imparável resvala o ápice do amargor, afinal,
esta é uma face adulta, num rosto sem açúcar.
durmo em muitas casas, camas, sofás bonitos,
tenho amigos e amigas, mas não posso agora
que me entendam nem sequer que possam ter
uma chance de operar anseios em meio ao pus
que reluz na doçura de um mau hálito matinal.
afastado da vida vulga por loucura, irei de bus
até sampa, dar uma volta com os surrealistas,
rezar aos deuses antigos descalço no trianon.
ver o lobo, diogo porra, calixto, aye, januário,
julia linda sempre, camila kiddo e tantas caras
ainda não vistas que verei com olhos de comer.
poetas proletários preenchem meu fraco coração,
orgulhosos das solas gastas e das camisas escuras.
decepcionados, nunca cabisbaixos, às vezes riem,
e quando riem seus dentes faltantes enchem o céu
de ternura e de uma lentidão que torna a vida fácil.
encontro prosadores e prosadoras da secreta palavra,
pessoas que gostam de caminhar: penso num passeio
com leo alice marília manacorda ana elvio paulinho
carol dirceu leo chagas negro leo e se aqui estivesse
o carlos orfeu comigo eu diria carlos orfeu monange.
um beijo na testa da zil com pequenas implicâncias
de um amor tão esquecido que é preciso se lembrar.
sonhar à noite no coração da máfia dos sentimentos
com arranha-céus de paz e sacrifícios sem punição.
crer num futuro promissor fora dos eixos, no poder
das conexões mais sutis entre os seres sob a terra.
porque nem tudo que prende segura, à noite a lua
se encheu de sorrisos e prefiro a faca, a lua turca,
uma bússola para se achar também para se perder.
O que é a USINA?
A USINA existe desde 2013 com o intuito de contribuir para a convergência de discussões contemporâneas e afirmar nas artes e no pensamento um lugar de brincadeira, exercício, experimentação e diversidade.
Contos, poemas, traduções, entrevistas, ensaios, artes visuais, curtas metragens, fotografias: propomos através de vários meios e temas a articulação entre diferentes artistas, obras, tempos e tradições.
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