Olá! Bem vindo ao boletim #18 da revista USINA!
Mensalmente enviamos uma seleção de conteúdos da revista USINA, como entrevistas, ensaios, artes visuais, instantâneos e tudo mais.
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Nessa edição: o conto de terror latino de Schweblin, o ensaio sobre serendipidade e cinema por Michel Schettert, a tradução do discurso da liderança Lakota Russell Means nos anos 80, fotografias analógicas do Rio por Camila Bevilaqua, o álbum Tempo & Magma de Tiganá Santana e o poema dança nº1 de Gabriel Gorini
Literatura
O Cavador - Samanta Schweblin
Os países da América Latina, apesar de heterogêneos, compartilham experiências cotidianas que os aproximam. Aspectos como o sistema político, a misoginia, as desigualdades sociais e as questões étnico-raciais produzem formas de violências únicas que estão cada vez mais em destaque em obras de autoras latino-americanas.
Esse grupo de escritoras navegam entre memória e imaginação para construir cenários aterrorizantes que nos são muito familiares. São episódios que saem do âmbito do realismo cru e passam a habitar outras camadas: a do subconsciente, do onírico e até mesmo do fantástico.
Como forma de apresentar essa literatura a novos leitores, a USINA selecionou quatro contos de quatro autoras, começando por Samanta Schweblin. Schweblin é uma escritora argentina, nascida em Buenos Aires em 1978. Estudou Cinema na Universidade de Buenos Aires, onde desenvolveu um estilo narrativo visual e atmosférico que marca suas obras.
Seu livro, “Pássaros na Boca” (2009), uma coleção de contos, ganhou o prêmio Casa de las Américas, o que a estabeleceu como uma das vozes emergentes mais promissoras da literatura latino-americana. Seu romance “Distância de Resgate” (2014) recebeu aclamação internacional e foi finalista do Man Booker International Prize em 2017. A obra mistura elementos de suspense e terror psicológico, explorando temas de maternidade, medo e o impacto ambiental.
Precisava descansar, então aluguei um casarão num povoado no litoral, longe da cidade. Ficava a quinze quilômetros do centro, seguindo o caminho de cascalho no sentido do mar. Quando estava chegando, a vegetação me impediu de prosseguir de carro. Dava para ver o telhado da casa à distância. Me animei a descer. Peguei o indispensável e continuei a pé. Escurecia e, embora não se visse o mar, dava para escutar as ondas batendo na orla. Estava já a poucos metros quando tropecei em algo.
“É você?”
Retrocedi assustado.
“É você, chefia?” Um homem se levantou com dificuldade. “Não desperdicei nem um só dia, viu… Juro pela minha mãezinha…”
Falava apressadamente; alisou a roupa e assentou o cabelo.
“O que acontece é que justamente ontem à noite… Imagine só, chefia, se estando tão perto eu ia deixar as coisas para outro dia. Venha, venha”, falou e se enfiou em um poço que havia no meio do matagal, a só um passo de onde estávamos.
Agachei e enfiei a cabeça. O buraco media mais de um metro de diâmetro e não se via nada lá dentro. Para quem trabalharia um sujeito que não reconhecia nem seu próprio superior? O que estaria procurando para cavar tão fundo?
Cinema
Serendib - Michel Schettert
Serendib é um ensaio experimental que a partir da ideia de serendipidade – descobertas que acontecem ao acaso – nos apresenta um dos maiores câmeras do cinema brasileiro: Dib Lutfi. Dividido em 7 partes, o texto transcorre com associações e curiosidades em torno da figura de Dib e sua participação crucial no Cinema Novo, assim como uma colaboração pouco conhecida no filme alemão Das Unheil, o que nos leva também a uma carta de Goethe e uma breve reflexão sobre a ideia do Eterno Retorno.
“Passou que quem queria criar um cinema novo, pensava em câmera na mão. Quem tinha ideias, mas não dispunha de recursos, chamava o Dib com a Arriflex IIC. Ele era uma saída, uma alternativa experimental. Virou uma estética. Chamá-lo para trabalhar significava defender essa gambiarra tropical. Quando o nome do Dib coçava na língua do diretor, já subia na cabeça a imagem junto. Ao pensar no Dib, o cineasta estaria prontamente se agregando ao estilo que ele propunha: a Câmera Dibiana – uma imagem que intima o corpo, os passos, o ritmo e o pulso do plano, que corre pelo espaço-tempo da cena, fluidamente, agenciando uma câmera-personagem, às vezes mais, às vezes menos pessoal – a depender das projeções do diretor.
Um corpo-mente aparelhado. Dib era aquele olho-máquina de Vertov. E mais. Ele instaurou a presença na câmera, levando-a na ponta dos pés. Foi responsável por livrar do maquinário pesado toda cena propensa à espontaneidade interpretativa, jogando com a improvisação do elenco, criando com ele um mutualismo, tirando o excesso de marcas. Era como um ator em ação, segurando as lentes – ou melhor, um bailarino. Sua inteligência estava no fato de contracenar com a equipe de forma tão conjunta, tão encadeada, que aquela incômoda presença da câmera se diafanizava. O apetrecho sumia. Seus movimentos tinham a leveza do vento, o fluxo líquido e a firmeza do grão.”
Tradução
Discurso de Russell Means, Lakota, em julho de 1980
Traduzido por Idjahure Kadiwel e Santiago Perlingeiro
O Black Hill Gathering Speech, proferido por Russell Means em 1980, foi um poderoso discurso realizado durante a reunião de Black Hills, em Dakota do Sul, um evento que reuniu indígenas e aliados para discutir questões relacionadas aos direitos dos povos nativos americanos. Nesse discurso, Means, um dos mais proeminentes ativistas do Movimento Indígena Americano (AIM), abordou a longa história de opressão e genocídio enfrentada pelos povos indígenas nas Américas. Ele denunciou a colonização, a destruição cultural e as políticas de assimilação forçada impostas pelo governo dos Estados Unidos. Means também destacou a importância da soberania indígena, da preservação das tradições culturais e da luta contínua pela justiça e pelos direitos humanos. O discurso foi um chamado à ação, reafirmando a resistência indígena e a necessidade de uma transformação profunda nas relações entre os povos nativos e o Estado.
(…)É necessário um esforço muito grande a um índio americano para não se deixar ser europeizado. A grandeza desse esforço só pode se dar pelas vias da tradição, dos valores tradicionais que detêm nossos anciãos. Precisa vir da roda, dos quatro cantos, as relações: nunca de um livro, nem de mil deles. Nenhum europeu poderá jamais ensinar a um Lakota como ser um Lakota, um Hopo a ser um Hopi. Um grau de mestre em “estudos indígenas” nem nada disso podem fazer de alguém um ser humano ou prover conhecimento acerca dos meios tradicionais de um povo. Pode, isso sim, criar-lhe uma mentalidade europeia, à margem.
Preciso aqui ser claro sobre algo, porque parece haver alguma confusão a respeito. Quando falo de europeus, ou de mentalidade europeia, não estou corroborando com distinções equivocadas. Não estou dizendo que há, por um lado, o produto de milhares de anos de um desenvolvimento intelectual genocida, reacionário, europeu, que são maus; em oposição a um novo pensamento intelectual e revolucionário, que é bom. Estou me referindo às chamadas teorias marxistas, anarquistas e esquerdistas em geral. Não acredito que essas teorias possam ser diferenciadas do restante da tradição intelectual europeia. É exatamente a mesma velha canção.(…)
Fotografia
Rio analógico - Camila Bevilaqua
As fotografias a seguir foram tiradas no Rio de Janeiro entre 2011 e 2015, registrando a paisagem litorânea carioca e um pouco de sua arquitetura histórica.
Música
Tempo & Magma - Tiganá Santana
Tempo & Magma é o terceiro álbum do músico, pesquisador e artista baiano Tiganá Santana. Lançado em 2015 pelo selo sueco ajabu!, este álbum duplo é fruto de uma residência no Senegal proporcionada por um Prêmio da Unesco. Por cerca de 5 meses Tiganá conviveu, compôs e gravou em parceria com os músicos da Sobo Bade Band, oriundos de Senegal, Mali e Guiné-Conacri, além do percussionista Sebastian Notini e do baixista Andreas Unge, responsáveis pela produção musical.
O disco foi finalizado posteriormente no Brasil, acrescentando a participação da cantora Céu e da grandiosa Mãe Stella de Oxossi. Reconhecido internacionalmente e apreciado ao redor do mundo, Tempo & Magma se destaca como uma obra-prima na música contemporânea, concretizando uma ponte estético-musical tão preciosa com elegância e excelência, desde os arranjos e composições até o título e capa do disco.
Poesia
Dança nº1 - Gabriel Gorini
O que é a USINA?
A USINA existe desde 2013 com o intuito de contribuir para a convergência de discussões contemporâneas e afirmar nas artes e no pensamento um lugar de brincadeira, exercício, experimentação e diversidade.
Contos, poemas, traduções, entrevistas, ensaios, artes visuais, curtas metragens, fotografias: propomos através de vários meios e temas a articulação entre diferentes artistas, obras, tempos e tradições.
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